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quinta-feira, 6 de maio de 2010

A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa. Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99 http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11135

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A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa.

Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99

Elaborado em 07.2007.
Flávio Romero de Oliveira Castro Lessa
Analista Judiciário na Justiça Federal em Vitória (ES). Graduado em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Direito Público pelas Faculdades Integradas de Vitória (FDV).
RESUMO
Busca investigar o princípio da proteção à confiança dos particulares nos atos emanados do Poder Público, tendo por escopo o exercício da função administrativa. Delimita o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança e seu âmbito de aplicação, aprofundando-o sob a perspectiva da possibilidade de manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos. Correlaciona o princípio da proteção à confiança com o princípio constitucional da legalidade administrativa (autotutela administrativa), e também com a segurança jurídica e com a noção de Estado de Direito. O método de abordagem utilizado é o dedutivo, tendo por base a análise das regras e princípios constitucionais referentes ao tema, além dos diplomas legais pertinentes, em específico, o artigo 54 da lei 9784/99. Identifica os três precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal em que se prestigiou a aplicação do princípio da proteção à confiança em detrimento de outros princípios, dentre eles, o da legalidade. Analisa o artigo 54 da lei n º 9784/99 sob o enfoque da necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, em limitação ao exercício da autotutela administrativa. Reconhece que, no referido dispositivo legal, o legislador efetivou uma ponderação em abstrato, conciliando dois princípios constitucionais (princípio da legalidade administrativa e princípio da proteção à confiança). Sistematiza os requisitos que qualificam uma expectativa como legítima e apta a ensejar a aplicação do princípio da proteção à confiança em favor do particular. Conclui pela possibilidade de, com base em tais requisitos, se preservar os efeitos de atos administrativos ampliativos de direitos, ainda que originariamente inválidos. Conclui, ainda, ser inviável, sob um rigor constitucional, a utilização da teoria do fato consumado como fundamento à manutenção dos efeitos do ato viciado.
Palavras-chave: Segurança jurídica. Proteção à confiança. Boa-fé. Autotutela administrativa.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 A SEGURANÇA JURÍDICA E A LEGALIDADE COMO VALORES ESSENCIAIS PARA O ESTADO DE DIREITO. 3 O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA GÊNESE CONSTITUCIONAL. 3.1 A EFICÁCIA NEGATIVA (DEVER DE ABSTENÇÃO) E A EFICÁCIA POSITIVA (DEVER DE AÇÃO) DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA.3.2 PROTEÇÃO À CONFIANÇA NAS RELAÇÕES ENTRE O PODER PÚBLICO E OS PARTICULARES. 3.3 A GÊNESE CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA. 3.3.1 A ascensão e o reconhecimento da normatividade dos princípios. 3.3.2 O princípio da proteção à confiança e sua gênese constitucional. 4 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA APLICAÇÃO COMO FATOR LIMITATIVO À AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA . 4.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE APLICADO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 4.2 O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA E SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO: NECESSIDADE DE RELATIVIZAÇÃO. 4.3 A IDENTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 4.4 A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO. 5 O ARTIGO 54 DA LEI nº 9.784/99 E A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA: SISTEMATIZAÇÃO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À SUA APLICAÇÃO. 5.1 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: O DECURSO DO LAPSO TEMPORAL DE CINCO ANOS. 5.2 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A CONFIGURAÇÃO DA BOA-FÉ DO DESTINATÁRIO DO ATO ADMINISTRATIVO REPUTADO VICIADO. 5.2.1 A presunção de legitimidade dos atos administrativos como fator favorável à configuração da boa-fé. 5.3 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: ATOS ADMINISTRATIVOS AMPLIATIVOS DE DIREITOS. 6 CONCLUSÃO. 7 REFERÊNCIAS

1 INTRODUÇÃO
A idéia mais básica e essencial de Direito nos remete, inegavelmente, à noção de segurança jurídica, sendo inconteste, por conseguinte, a existência da segurança jurídica como um dos pilares do Estado de Direito. Realmente, é de se esperar que um Estado que se autodenomina Estado Democrático de Direito coíba ao máximo o arbítrio Estatal, restando, em regra, previsíveis as suas condutas, sendo perfeitamente identificáveis as conseqüências advindas de eventuais descumprimentos de preceitos normativos.
Tal circunstância advém primordialmente da regulação prévia (por meio dos diversos enunciados prescritivos que irão compor as normas jurídicas) das diversas condutas possíveis dos cidadãos e, principalmente, da regulação das relações jurídicas entre estes e o próprio Estado, que também atua no seio da sociedade por meio de seus agentes públicos.
Contudo, há de se considerar que não reside essencialmente nenhuma novidade nesta noção genérica de segurança jurídica, que se encontra ínsita à própria idéia de Direito e indispensável à caracterização do denominado Estado de Direito. A problemática surge quando se passa a questionar, sob a ótica do constitucionalismo moderno, os modos de efetivação do princípio da segurança jurídica, de tal sorte que se torna necessário aferir um patamar mínimo de segurança que atenda às aspirações dos cidadãos, propiciando, na medida do possível, estabilidade às relações jurídicas e, em última análise, à própria ordem jurídica.
É possível se verificar, no plano do direito positivo e, sobretudo, na própria Constituição Federal, diversos preceitos normativos que materializam institutos destinados à proteção, seja direta ou indireta, da segurança jurídica, dentre eles: a prescrição e a decadência (artigos 189 a 211, Código Civil/2002), a preservação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e a intangibilidade da coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI, CF), o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, CF), o princípio da legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF), o princípio da legalidade e anterioridade em matéria penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF), a irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º XL, CF), etc.
Ainda que não se possa negar a evidente conexão dos referidos dispositivos legais e constitucionais com a materialização da segurança jurídica, há de se considerar, contudo, que as referidas previsões normativas não esgotam o âmbito de aplicação e proteção do princípio da segurança jurídica. É a complexidade dos casos concretos, sobretudo aqueles que envolvem relações entre os particulares e o Poder Público, que, por muitas vezes, irá reclamar outras soluções que se põem além daquelas fórmulas já positivadas pelo Direito, anteriormente mencionadas.
Dentro deste contexto é que se insere a noção do princípio da proteção à confiança, sendo tal princípio identificado por Almiro do Couto e Silva, um dos pioneiros na doutrina pátria a enfrentar o tema, como uma feição subjetiva da segurança jurídica, relacionando-se à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação. (SILVA, 2005, p. 03-04).
Com efeito, é possível que existam várias hipóteses em que situações criadas administrativamente, sob o manto da ilegalidade, ou mesmo da inconstitucionalidade, perdurem por vários anos sob aparente normalidade e legalidade, gerando no administrado a justa expectativa de manutenção de seus efeitos benéficos, uma vez que já consolidados. Decerto que numa hipótese como esta, em observância à segurança jurídica e, mais especificamente, ao princípio da proteção à confiança, o Poder Público não poderia, deliberadamente, invocando apenas o princípio da legalidade, frustrar uma justa expectativa que tenha criado para o administrado.
Se de um lado vige inegavelmente o princípio da autotutela administrativa, em que se prestigia o princípio da legalidade, segundo o qual a administração pública tem o poder-dever de rever e anular seus atos administrativos eivados de ilegalidade, de outro, há de haver um temperamento a ser efetivado nos casos concretos, analisando-os sob a ótica da segurança jurídica e, por assim dizer, também da proteção à confiança legítima.
Apesar do consenso acerca da necessidade de observância da estrita legalidade pela Administração Pública, há de se considerar que nem sempre a aplicação fria e mecânica da lei atinge as finalidades reclamadas pelo ordenamento jurídico. É necessário, por conseguinte, se aferir a medida de aplicação do princípio da legalidade.
Dentro deste contexto, as duas principais questões que nortearão o presente estudo são as seguintes: (i) a manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos representa afronta ao princípio constitucional da legalidade? Se não, sobre que fundamentos e em que condições tais atos poderiam continuar a produzir efeitos para aqueles que deles se beneficiaram? (ii) sob a ótica constitucional, é viável se invocar atualmente a teoria do ‘fato consumado’ para se justificar a manutenção de situações criadas sob o manto da ilegalidade?
Para tanto, parte-se da idéia inicial, admitida como uma verdade a priori, podendo ser confirmada ou infirmada ao longo do desenvolvimento da pesquisa: a autotutela administrativa, cuja base assenta-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da legalidade, não tem aplicação irrestrita, merecendo, pois, em algumas hipóteses, ser relativizada, tendo como parâmetro limitador o princípio constitucional da proteção à confiança, sendo insuficiente e inviável se argumentar, como fundamento à manutenção dos efeitos do ato viciado, a teoria do `fato consumado`.
No percurso a ser seguido, é possível se identificar as principais variáveis envolvidas: (i) a segurança jurídica e a legalidade como valores constitucionais essenciais para o Estado de Direito; (ii) presunção de legitimidade dos atos administrativos como fator indutor de confiança legítima nos destinatários da função administrativa; (iii) o princípio da legalidade como norteador da atividade administrativa; (iv) reconhecimento pela doutrina e jurisprudência do princípio da proteção à confiança como um corolário do princípio constitucional da segurança jurídica; (v) a relativização dos princípios, quando de sua aplicação num caso concreto; e (vi) concretização do princípio da proteção à confiança pelo legislador ordinário.
Em primeiro plano, poder-se-ia imaginar, por uma análise mais geral, em abstrato, que a manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos representa afronta ao princípio constitucional da legalidade. Contudo, a análise do caso concreto pode recomendar que a efetiva proteção à legalidade, entendida esta em sentido amplo, de observância às finalidades essenciais objetivadas pelo ordenamento jurídico, é, de fato, melhor atendida com a preservação de determinados efeitos jurídicos dos atos administrativos, apesar de viciados; assim, o interesse público seria atendido.
Acresça-se que devem estar presentes determinados requisitos para que se qualifique como legítima uma expectativa por parte do administrado, de modo a possibilitar a incidência do princípio da proteção à confiança.
De fato, não é qualquer situação que se insere no escopo de aplicação do referido princípio. Há de haver uma situação excepcional, atípica, onde é possível se aferir o atendimento de requisitos objetivos e subjetivos, cujos conteúdos aos poucos vão sendo construídos pela doutrina, jurisprudência e até mesmo positivados pelo legislador infraconstitucional. Neste caminho, relevante foi a edição da Lei nº 9874/99 que, em seu art. 54, concretizou e forneceu balizas, em nível federal, ao princípio da proteção à confiança.
Como se percebe, é possível se identificar desde logo, a título de delimitação temática, que apesar da vastidão e amplitude que sugere qualquer estudo acerca da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança, o presente estudo limita-se à análise do referido princípio sob a ótica da Administração Pública, no exercício da função administrativa. Não se desconhece, todavia, que todo o Poder Público, em sentido amplo, vale dizer, Legislativo, Executivo e Judiciário, dentro de suas respectivas funções são, inegavelmente, destinatários das limitações impostas pelo princípio da segurança jurídica da proteção à confiança.
Mais um dado delimitador temático: busca-se investigar acerca da eficácia negativa do princípio da proteção à confiança ou, em outras palavras, busca-se investigar a necessidade de que o Estado, no exercício da função administrativa, em algumas hipóteses, se abstenha de agir e fique limitado em sua atuação (não invalidando um ato administrativo ou não desconstituindo seus efeitos), resguardando, por conseguinte, situações geradoras de confiança legítima e estabilizando situações jurídicas criadas administrativamente.
Em linhas gerais, é possível se adiantar que o caminho a ser percorrido passará pela identificação, delimitação do âmbito de aplicação e contextualização do princípio da proteção à confiança legítima, correlacionando-o com o princípio da segurança jurídica; delimitação do âmbito de aplicação da autotutela administrativa, enfocando-o sob a ótica do princípio da legalidade a ser observado pela administração pública; identificação na jurisprudência, doutrina e legislação dos principais argumentos e preceitos normativos capazes de sustentar a possibilidade de manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, prestigiando o princípio de proteção à confiança; por fim, buscará analisar o artigo 54 da lei n º 9784/99, sob o enfoque da necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, sistematizando os requisitos (objetivos e subjetivos) que qualificam uma expectativa como legítima e apta a ensejar a aplicação do princípio da proteção à confiança em favor do particular.

2 A SEGURANÇA JURÍDICA E A LEGALIDADE COMO VALORES ESSENCIAIS PARA O ESTADO DE DIREITO.
Convém registrar, de início, que não é singela a tarefa de tentar definir e delimitar com algum grau de precisão o princípio da segurança jurídica e sua conexão com a noção de Estado de Direito. Por conseguinte, a sua compreensão, apesar de não representar propriamente um "mistério" dentre os estudiosos do Direito, muitas vezes se manifesta de forma obscura, incompleta e, por demais, singela, de tal forma que é possível se afirmar que tal compreensão não prescinde de uma incursão por todo ordenamento jurídico, buscando-se identificar como o legislador ordinário e, principalmente, o legislador constitucional procuraram materializar regras e princípios afetos direta ou indiretamente à segurança jurídica.
Em vista destas considerações, considerando que o objeto principal da presente pesquisa possui íntima relação com a compreensão e delimitação do princípio da segurança jurídica, sendo o próprio princípio da proteção à confiança concebido como uma feição subjetiva do princípio da segurança jurídica (SILVA, 2005, p. 03-04), torna-se imprescindível uma sistematização, ainda que breve, do princípio da segurança jurídica e de suas principais implicações.
A concepção de uma sociedade juridicamente organizada requer como premissa o reconhecimento da segurança jurídica como um valor supremo. Na realidade, não é exagero se afirmar que o anseio por segurança jurídica justifica a própria existência e desenvolvimento da ordem jurídica, sendo notório que o ser humano, diante da própria essência da condição humana, tende a buscar, invariavelmente, situações que lhe confiram um maior grau de estabilidade, seja no âmbito estritamente privado, seja no âmbito das relações travadas com o Poder Público.
Dentre as várias idéias que podem ser, de alguma forma, relacionadas à consecução da segurança jurídica, a legalidade (o princípio da legalidade) é, inegavelmente, a mais evidente e fundamental. Com efeito, a partir da regulação prévia das diversas condutas possíveis dos cidadãos (por meio dos diversos enunciados prescritivos que irão compor as normas jurídicas) torna-se possível se identificar as conseqüências advindas de eventuais descumprimentos de tais preceitos normativos. Por conseguinte, a submissão à lei e, mais amplamente a todo ordenamento jurídico, em observância ao princípio da legalidade deve, de fato, nortear toda atividade Estatal, seja ela de índole administrativa, jurisdicional ou legislativa.
É de se considerar, no entanto, que a amplitude do conceito de segurança jurídica, de índole inegavelmente principiológica, perfazendo elemento central e essencial da ordem jurídica e sendo da essência da própria concepção de Estado de Direito, nos remete à conclusão de que não é possível se extrair seu conteúdo de uma única norma jurídica. Assim, afigura-se inviável se reconhecer um conceito fechado e único acerca do princípio da segurança jurídica; ao revés, sua plurissignificação e caracterização advêm da observância do ordenamento jurídico na sua totalidade, compondo-se pela conjugação de diversas normas jurídicas. Neste sentido, é a afirmação de Rafael Maffini:
Percebe-se, pois, que o princípio da segurança jurídica, em verdade, decorre de uma confluência qualificada das noções de certeza, estabilidade, previsibilidade, confiança, o que necessariamente se dá em face da conjugação de várias normas jurídicas, dentre os quais [sic] se poderiam mencionar a própria legalidade administrativa, a irretroatividade, a proibição de arbitrariedade, a proteção da confiança, dentre outras tantas (regras, princípios e postulados) que dão conformação ao sobreprincípio da segurança jurídica, sendo, todavia, mais do que a simples conjugação de tais subprincípios para alcançar uma noção de instrumento de justiça social. (MAFFINI, 2006, p.48-49).
Dentro desta mesma ordem de idéias, afirmou Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do princípio da segurança jurídica:
Este princípio [da segurança jurídica] não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo. Enquadra-se, então, entre os princípios gerais de Direito [...] (MELLO, 2003, p.112).
De fato, como já afirmado na introdução deste trabalho, é possível se identificar no direito posto, sobretudo na Constituição Federal, diversas regras e princípios jurídicos que buscam materializar, direta ou indiretamente, o princípio da segurança jurídica, destacando-se dentre eles: a prescrição e a decadência (artigos 189 a 211, Código Civil/2002), a preservação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e a intangibilidade da coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI, CF), o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, CF), o princípio da legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF) o princípio da legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF), o princípio da legalidade e anterioridade em matéria penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF), a irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º XL, CF), etc.
Dentro de tal contexto, importa registrar que a noção fundamental de segurança jurídica alia-se à idéia de previsibilidade, regularidade e estabilidade das relações jurídicas, sobretudo quando se está a considerar as relações jurídicas de natureza pública, onde há participação direta do Estado no exercício de sua potestade administrativa, sendo certo que, por muitas vezes, sob a justificativa de atuar em benefício do interesse público (genericamente considerado), pode tender à arbitrariedade e extrapolar os limites que lhe cabem dentro de um Estado de Direito.
Decerto que a observância do princípio da legalidade caracteriza e confere identidade própria ao Estado de Direito, o qual, por sua vez, contrapõe-se a qualquer forma de arbitrariedade e autoritarismo, sendo correto afirmar que ninguém (nem a maior das autoridades do Estado e nem mesmo o próprio Estado) está acima da lei; no entanto, tal princípio, por si só, não esgota a compreensão do princípio do Estado de Direito.
Com efeito, apesar de ser imprescindível a idéia de um ordenamento jurídico pautado pela legalidade, o reconhecimento de um Estado de Direito vai além da mera legalidade e da submissão do Estado à lei, representando princípio mais amplo, nos remetendo à idéia de reconhecimento dos direitos fundamentais, perfazendo verdadeiro limitador e, principalmente, legitimador da atividade estatal. Neste sentido, é a lição de Ingo Wolfgang Sarlet:
Considerando-se [...] o Estado de Direito não no sentido meramente formal, isto é, como `governo das leis`, mas, sim, como `ordenação integral e livre da comunidade política`, expressão da concepção de um Estado material de Direito, no qual além da garantia de determinadas formas e procedimentos inerentes à organização do poder e das competências dos órgãos estatais, se encontram reconhecidos, simultaneamente, como metas, parâmetros e limites da atividade estatal, certos valores, direitos e liberdades fundamentais, chegando-se fatalmente à noção – umbilicalmente ligada à idéia de Estado de Direito – de legitimidade da ordem constitucional e do Estado. (SARLET, 2007, p.70).
O Estado de Direito corresponde, ademais, a norma expressamente prevista no texto constitucional (artigo 1º, CF), possuindo caráter imediatamente finalístico, associando-se a cinco idéias fundamentais, que foram assim resumidas por Rafael Maffini, após examinar diversas decisões do STF que fizeram alusão direta ao Estado de Direito como um sobreprincípio jurídico: (a) submissão do Estado à ordem jurídica; (b) submissão do Estado aos mecanismos de controle e de responsabilização; (c) separação as funções estatais; (d) submissão do Estado aos direitos e garantias fundamentais; e (e) segurança jurídica. (MAFFINI, 2006, p.44).
No que toca especificamente ao elemento central objeto da presente pesquisa, torna-se inafastável a lição de Almiro do Couto e Silva, reconhecidamente um dos pouquíssimos doutrinadores que, no direito pátrio, se dedicou especificamente ao estudo do princípio constitucional da segurança jurídica, na vertente da proteção à confiança.
À segurança jurídica se atribuiu uma feição objetiva, associada à noção genérica de previsibilidade concernente à ordem jurídica (irretroatividade das leis, direito adquirido, princípio da legalidade, etc), e outra subjetiva, que, por sua vez, associa-se à idéia de estabilidade e confiança das pessoas nos atos e procedimentos estatais, de modo a ensejar, em determinadas hipóteses, a estabilização das situações jurídicas decorrentes da atuação estatal, ainda que tais situações tenham se originado sob o manto da ilegalidade. Eis um trecho do que afirmou referido autor acerca do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança (daquele deduzido):
A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. [...] A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação [...] Este último princípio (a) impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais, ou (b) atribui-lhe conseqüências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada nos beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral de que aqueles atos eram legítimos, tudo fazendo razoavelmente supor que seriam mantidos. (SILVA, 2005, p. 03-05).
Deve-se registrar, inclusive, que seus ensinamentos já foram citados expressamente em algumas das poucas decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal [01], através do eminente Min. Gilmar Mendes, em que se reconheceu a possibilidade de manutenção de atos administrativos inválidos, para fins de se alcançar a estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, através da aplicação do princípio constitucional da proteção à confiança.
Diante do que fora afirmado até aqui, é possível se verificar que existem três princípios de matriz constitucional que se interligam diretamente: (a) o princípio do Estado de Direito, como princípio maior (ou sobreprincípio) inerente à própria organização, funcionamento e finalidade da ordem jurídica, representando, em linhas gerais, vinculação do Estado à legalidade e ao Direito como um todo; (b) o princípio da segurança jurídica que, por sua vez, encontra-se insitamente relacionado ao Estado de Direito, sendo inerente à própria idéia de Direito a busca por segurança jurídica; e (c) o princípio da proteção à confiança [02], que, conforme anteriormente mencionado, representa uma das significações (feição subjetiva) do princípio da segurança jurídica.
Cumpre consignar, por fim, a sistematização e delimitação do conteúdo jurídico do princípio da segurança jurídica proposta por Rafael Maffini, que após se aprofundar nas lições de Almiro do Couto e Silva, resumiu seus três principais aspectos:
[...] a) numa feição de previsibilidade ou de "cálculo prévio", que opera ex ante, para os fins de se evitar surpresas decorrentes da atividade estatal; b) numa feição de acessibilidade, fundamentando a publicidade e, em termos amplos, a transparência de ação estatal; c) como instrumento de estabilidade, ou de previsibilidade ex post, continuidade, permanência, regularidade das situações e relação jurídicas decorrentes da ação estatal. A proteção substancial da confiança, no Direito Administrativo, situa-se na última significação do princípio da segurança jurídica. (MAFFINI, 2006, p.222).

3 O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA GÊNESE CONSTITUCIONAL.
Cumpre destacar, inicialmente, que não há no ordenamento jurídico brasileiro uma definição legal de confiança e, nem, por conseguinte, do princípio da proteção à confiança. Tal constatação, aliada à própria dificuldade semântica que permeia a noção genérica de confiança (e também de segurança jurídica), já é suficiente para remeter o assunto para o âmbito dos conceitos jurídicos, senão indeterminados, insuficiente determinados.
Não obstante a investigação jurídica acerca do princípio da proteção à confiança traga consigo a dificuldade de se delimitar com precisão seu conteúdo jurídico, sua concepção vem sendo construída aos poucos pela doutrina e, sobretudo, pela jurisprudência [03] que, diante da análise de casos concretos, por vezes complexos, termina por identificar a necessidade de sua tutela jurídica, quase sempre se valendo da fundamentação concernente à necessidade de segurança jurídica, que é elemento essencial e qualificador do próprio Estado de Direito.
Buscando-se o sentido dado à palavra "confiança" no dicionário (AURÉLIO, 1998, p.525) é possível encontrar, dentre outros significados, crédito, fé e esperança firme. E é justamente essa a idéia inicial que se deve ter acerca do que venha a ser confiança: esperar por algo, ter uma expectativa, acreditar. Todavia, no que concerne especificamente ao objeto da presente pesquisa, obviamente, faz-se necessário um maior detalhamento, a fim de se delimitar o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança.
Com efeito, não é de qualquer confiança que se está a tratar. Interessa a identificação e compreensão daquela confiança que, em última análise, representa uma limitação à atividade Estatal e, mais especificamente, uma limitação à atividade do Estado no exercício da função administrativa [04]. Em outras palavras, há de se perquirir a confiança que, elevada à categoria de princípio, com respaldo no ordenamento jurídico e, sobretudo, no princípio constitucional da segurança jurídica, seja passível de tutela jurídica, de modo a justificar a estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, ainda que originadas sob o manto da ilegalidade (não invalidando ou preservando os efeitos de atos administrativos).
Decerto, todavia, que a confiança do cidadão nos atos emanados da Administração Pública, de um modo geral, não pode ensejar uma mitigação absoluta do princípio da legalidade administrativa: a regra é que os atos contrários ao ordenamento jurídico, seja por ilegalidade ou por inconstitucionalidade, devem ser anulados pela própria Administração Pública, no regular exercício da autotutela administrativa. Para que se possa invocar a tutela jurídica a partir do reconhecimento do princípio da proteção à confiança, há de haver, na hipótese, uma nota de atipicidade e de excepcionalidade.
Partindo-se dessa consideração, a referida nota de atipicidade, caracterizadora de uma situação excepcional, se revela quando, no exame do caso concreto, for possível se verificar o preenchimento de determinados requisitos, tanto objetivos, quanto subjetivos [05], relacionados, na maioria das vezes, com o comportamento daquele que se beneficiaria com a manutenção do ato (análise acerca da boa fé do beneficiário do ato administrativo), com o tempo de duração de seus efeitos e com a natureza do ato administrativo que se pretende ter preservado os efeitos.
Nestes termos, a confiança merecedora de tutela jurídica, que pode verdadeiramente ser considerada como um limite à atuação Estatal, podendo ser argüida pelo particular em face do Poder Público, objetivando ver mantida alguma situação jurídica que lhe é favorável e que foi criada por ato Estatal, é aquela denominada, doutrinariamente, como confiança legítima.Na lição de Luís Roberto Barroso:
Confiança legítima significa que o Poder Público não deve frustrar, deliberadamente, a justa expectativa que tenha criado no administrado ou no jurisdicionado. Ela envolve, portanto, coerência nas decisões, razoabilidade nas mudanças e a não imposição retroativa de ônus imprevistos. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p. 276).
Dentro deste contexto, procedendo-se a uma delimitação conceitual acerca do princípio da proteção à confiança, relevantes são as considerações de Almiro do Couto e Silva:
Na Alemanha, onde o princípio da proteção à confiança nasceu, por construção jurisprudencial, pode-se dizer que este princípio prende-se predominantemente à questão da preservação dos atos inválidos, mesmo nulos de pleno direito, por ilegais ou inconstitucionais, ou, pelo menos, dos efeitos desses atos, quando indiscutível a boa fé. (SILVA, 2005, p. 05).
Destaca-se, ainda, a lição do referido autor quando, a título de contextualização, aludiu ao Estado Social (ou Estado Providência) como sendo o ambiente adequado para surgimento e desenvolvimento do princípio da segurança jurídica e da proteção à confiança:
Nessa moldura, não será necessário sublinhar que os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança são elementos conservadores inseridos na ordem jurídica, destinados à manutenção do status quo e a evitar que as pessoas sejam surpreendidas por modificações do direito positivo ou na conduta do Estado, mesmo quando manifestada em atos ilegais, que possa ferir os interesses dos administrados, ou frustar-lhes as expectativas. Colocam-se, assim, em posição de tensão com as tendências que pressionam o Estado a adaptar-se a novas exigências da sociedade, de caráter econômico, social, cultural ou de qualquer outra ordem, ao influxo, por vezes, de avanços tecnológicos ou científicos, como os realizados, com impressionante velocidade, no decorrer do século XX. (SILVA, 2005, p. 06).
Verifica-se, a partir do que foi dito até agora, que o foco da presente pesquisa se limita à análise do princípio da proteção à confiança, tendo por escopo o exercício da função administrativa do Estado, sob a perspectiva da possibilidade de manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos, sem que isso represente, necessariamente, afronta ao princípio constitucional da legalidade. Contudo, não pode deixar de ser registrado que, além dessa abordagem que compõe o objeto do presente trabalho, a proteção à confiança, tendo por escopo o exercício da função administrativa do Estado, pode ser vislumbrada também sob outras duas perspectivas (que também compõem seu conteúdo jurídico), que assim foram identificadas por Rafael Maffini:
[...] a) de um lado, tem-se a proteção procedimental da confiança ou das expectativas legítimas, consubstanciada na necessidade de uma atividade administrativa processualizada, em que se assegure a participação dos destinatários da função administrativa; b) de outro lado, tem-se a proteção compensatória da confiança, compreendida como o dever do Estado de ressarcir os prejuízos decorrentes da frustração de expectativas nele legitimamente depositadas pelos cidadãos; c) por fim, destaca-se a proteção substancial ou material da confiança, cujo significado pode ser sumarizado como sendo um conjunto de normas jurídicas que visa à manutenção e à estabilização das relações jurídicas emergentes da ação administrativa do Estado, em face de expectativas que, por razões especiais, apresentam-se legítimas e, assim, dignas de proteção. (MAFFINI, 2006, p.32).
Há de se aferir, nesse momento, quais nuances permeiam o princípio da proteção à confiança no plano da eficácia.
3.1 A EFICÁCIA NEGATIVA (DEVER DE ABSTENÇÃO) E A EFICÁCIA POSITIVA (DEVER DE AÇÃO) DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA.
A pesquisa acerca do princípio da proteção à confiança comporta duas linhas de abordagem que, apesar de não necessariamente se excluírem, precisam ser devidamente identificadas, explicitadas e compreendidas, sob pena de prejuízo à própria delimitação temática. Trata-se da eficácia negativa e da eficácia positiva do princípio da proteção à confiança.
Percebe-se, assim, que, conquanto não restem dúvidas quanto à gênese constitucional do princípio da proteção à confiança, no plano da eficácia há de se distinguir quando, a partir do referido princípio, se impõe uma atitude positiva (dever de ação) ou uma atitude negativa do Estado (dever de abstenção).
Importa frisar, desde logo, que dentro da delimitação temática ora proposta, busca-se investigar apenas acerca da eficácia negativa do princípio da proteção à confiança, uma vez que o objeto de estudo junge-se, em essência, à aplicação do referido princípio como limitação à autotutela administrativa. Nada impede, todavia, que seja identificado e compreendido, ainda que de forma menos aprofundada, o princípio da proteção à confiança sob a ótica de sua eficácia positiva.
Fala-se em eficácia negativa do princípio da proteção à confiança quando se enfoca a necessidade de conservação e estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, ainda que surgidas em contrariedade ao ordenamento jurídico; noutras palavras, a eficácia negativa corresponde a uma obrigação de não-fazer, a um dever de abstenção do Estado que, no exercício da função administrativa, desde que estejam presentes alguns requisitos, estaria constitucionalmente limitado em seu agir, em razão da incidência do princípio constitucional da proteção à confiança.
Acerca desse "dever de abstenção", expõe Judith Martins-Costa:
[...] a ação da Administração Pública para realizar ou resguardar o valor `segurança jurídica` e proteger a confiança é quase uma não-ação, constituindo, a rigor, umdever se abstenção: não atingir o direito adquirido ou o ato jurídico perfeito; não bulir com situações abrangidas pelo manto protetor da prescrição, decadência ou preclusão; não modificar a prática há longo tempo seguida, se a mudança vier em prejuízo do administrado [...] não revogar ou anular, em certas situações, atos administrativos que tenham produzido efeitos na esfera jurídica de terceiros [...] (MARTINS-COSTA, 2005, p.114).
Neste mesmo sentido é o ensinamento de Rafael Maffini (2006, p.225), se referindo à operatividade do princípio da proteção à confiança, numa feição negativa, correspondendo a um conjunto de obrigações de não fazer direcionado à conservação de condutas administrativas.
Estas breves considerações são suficientes para identificar, em linhas gerais, a significação da eficácia negativa do princípio da proteção à confiança. Cumpre aferir, neste momento, em que consiste a sua feição positiva (eficácia positiva).
É de se registrar que dentre as poucas manifestações doutrinárias (e jurisprudenciais) acerca, especificamente, do princípio da proteção à confiança e de sua gênese constitucional, a maior parte delas se refere à eficácia negativa do referido princípio, ou em outras palavras, como verdadeira limitação à atividade Estatal, impondo-lhe uma obrigação de não fazer, uma atividade negativa, um dever de abstenção.
Dentro de tal contexto, se esta limitação imposta à atividade Estatal em razão do referido princípio, em sua vertente negativa (eficácia negativa), já não se apresenta claramente (e nem suficientemente) definida e debatida pela doutrina e pela jurisprudência, mais incipientes ainda são as pesquisas acerca do princípio da proteção à confiança abordando sua eficácia positiva, a ensejar um dever de ação por parte do Estado.
É de se considerar, nesse passo, que a análise do princípio da proteção à confiança sob a ótica de sua eficácia positiva ultrapassa a mera inação e passividade Estatal para referir-se a deveres de cooperação endereçados à Administração Pública (MAFFINI, 2006, p.225). Trata, por conseguinte, daquela confiança do cidadão em atitudes positivas do Estado necessárias à consecução dos direitos fundamentais e à realização de justiça social.
A idéia sob a qual se ancora tal dever de ação do Estado está em que ao cidadão não haveria de ser tutelada apenas aquelas expectativas direcionadas à manutenção e preservação de relações jurídicas (que lhe são benéficas) criadas administrativamente; haveria de haver uma compreensão mais ampla do princípio da proteção à confiança, para se permitir ao cidadão ter uma expectativa – tutelada juridicamente – direcionada a um fazer Estatal, sobretudo ao se considerar o atual estágio de desenvolvimento do Estado que deve, dentre outras coisas, também estar compreendido com a realização da justiça e com o desenvolvimento e garantia dos direitos fundamentais.
Sob tais idéias, Judith Martins-Costa procurou identificar esta noção mais ampla do princípio da segurança jurídica, examinando um caso concreto que havia sido submetido ao Supremo Tribunal Federal.
Após examinar uma decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes [06], onde se evocou a aplicação do princípio da segurança jurídica na realização da própria justiça material, concedendo tutela cautelar para permitir à requerente se transferir de uma instituição de ensino público federal para outra, pleiteada em razão da assunção de cargo, para o qual foi aprovada em concurso público, Judith Martins-Costa resumiu este viés positivo do princípio da proteção à confiança, ampliando sua significação de modo a associá-lo à necessidade de atuação do Estado direcionada à proteção dos direitos fundamentais e realização de justiça material:
Sem desmerecer a significação da segurança jurídica como estabilidade ou fixidez jurídica, a decisão do Supremo Tribunal que motiva estas notas sinaliza, contudo, também uma outra significação para aquele antigo princípio. Faz o trânsito do peso mais significativo – no arco do princípio da segurança – da legalidade estrita para a proteção da confiança, permeando-o com um viés de dinamismo. Traça inter-relações entre a confiança e outros princípios, notadamente com os princípios e direitos fundamentais da personalidade humana. Indica que, por vezes, a confiança carece de ação (e não de abstenção), sob pena de ser afrontado o valor justiça. (MARTINS-COSTA, 2005, p.114).
A mesma autora argumentou, ainda, acerca da ampliação da significação do princípio da proteção à confiança concernente à tutela do livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, ancorada em comportamentos ativos (positivos) de proteção por parte do Estado:
[...] nessa nova conjuntura, o princípio da segurança jurídica vem relacionado a outro tipo de confiança, a outra lógica de confiança: não apenas se confia na inação estatal, a fim de não perturbar o espaço da livre iniciativa econômica; confia-se também na racionalização do poder do Estado e na sua ação, tendo em vista o interesse [...] no livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos [...] a Administração deve não apenas resguardar as situações de confiança traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé, considerada como norma de conduta, produtora de comportamentos ativos e positivos de proteção. (MARTINS-COSTA, 2005, p.114).
3.2 PROTEÇÃO À CONFIANÇA NAS RELAÇÕES ENTRE O PODER PÚBLICO E OS PARTICULARES.
Conquanto o foco da presente pesquisa se restrinja à análise e compreensão do princípio da proteção à confiança tendo por escopo a atividade Estatal no que diz respeito ao exercício de sua função administrativa, é inegável que o Poder Público, em todas suas esferas de atuação, deve agir em observância aos valores consagrados pelo legislador constitucional, notadamente a segurança jurídica, que representa a essência do próprio Estado de Direito.
Com efeito, a doutrina parece não hesitar em considerar que o princípio da segurança jurídica (e também o princípio da proteção à confiança, que com aquele se relaciona intimamente) repercute diretamente na esfera de atuação tanto do Poder Legislativo, quanto do Poder Executivo e do Judiciário; noutras palavras, todos os três Poderes são destinatários do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança.
A questão relacionada à possibilidade de se exigir do Poder Público, em suas três esferas de atuação, a observância dos postulados inerentes ao princípio da segurança jurídica e ao princípio da proteção à confiança, foi assim exposta por José Joaquim Gomes Canotilho:
Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica [...] A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção a confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial [...] As refrações mais importantes do princípio da segurança jurídica são as seguintes: (1) relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração – tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos. (CANOTILHO, 1998, p.250).
Neste mesmo sentido é a lição de Rafael Maffini:
[...] Com efeito, tal princípio [da confiança] revela-se uma faceta do princípio da segurança jurídica, sendo este uma decorrência do Estado de Direito. Diante disso, mostra-se viável tratar do princípio da proteção da confiança em todos (sic) as funções incumbidas ao Estado. (MAFFINI, 2006, p. 31).
Importa registrar, contudo, que, por uma questão de coerência com a premissa teórica adotada, onde se conceituou o princípio da proteção à confiança como uma feição subjetiva do princípio da segurança jurídica [07], seria tecnicamente mais acertado se conceber que a proteção da confiança se dirige mais diretamente (primariamente) às atividades administrativas do Estado e ao Poder Judiciário, onde é possível se identificar, mais especificamente, a formação de situações subjetivas que possam induzir expectativas legítimas nos cidadãos, a partir da aplicação do direito aos casos concretos; apenas indiretamente (secundariamente) se dirige à atividade legislativa.
Nestes termos, considerando que ao Poder Legislativo não é dado aplicar o direito ao caso concreto, incumbindo-lhe inovar a ordem jurídica através da criação de normas gerais e abstratas, sua limitação de agir afina-se mais diretamente com aqueles valores relacionados à segurança jurídica em sua vertente objetiva, abrangendo, assim, a idéia de irretroatividade das leis, proteção da lei ao ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. Há de haver ainda, por parte do legislador, a preocupação com a criação de regras transitórias ao se pretender modificar o direito vigente por longo período [08].
Outro exemplo nos é dado por Rafael Maffini, acerca da necessidade de inserção de regras transitórias a fim de se evitar que se frustrem as expectativas legítimas criadas nos cidadãos:
[...] exemplo diz respeito à inserção, pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004 (Reforma do Judiciário), de regras que passaram a exigir três anos de atividade jurídica como requisito de ingresso para as carreiras da magistratura e do Ministério Público (artigos 93, I e 129, parágrafo 3º, da CF). Uma análise cuidadosa da inovação em tela – de resto virtuosa – aponta para a omissão de regras transitórias necessárias à proteção das expectativas legítimas daqueles que já se encontravam em preparação para os concursos para tais carreiras. A inovação referida, por abrupta, dada a inexistência de regras transitórias, frustrou a planificação de inúmeras pessoas que, em face do modelo de seleção anteriormente adotado, não vinham se preocupando com a aquisição de experiência prática. (MAFFINI, 2006, p.27).
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